[espacosaude-ma] Carta ao Papai Noel
Querido Papai-noel,
Me chamo José Ninguém da Silva, tenho 33 anos. Sou brasileiro,
nordestino de nascença, mas hoje moro nessa terra linda que é o sul-
maravilha. Isso, aliás, me lembra o primeiro pedido que te fiz, aos
6 anos, ainda se lembra? "Papai-Noel, queria que a seca acabasse,
que caísse do céu um dilúvio e toda terra se enchesse de vida." Aos
sete já era mais realista: "queria entrar naquele caminhão e sair
desse inferno". O primeiro pedido o senhor não pode atender. Depois
eu entendi, não foi sua culpa. Aqui no sul me disseram que o
problema era do clima, da terra, do povo.
E esses daí foi Deus quem criou não é? O que pode um pobre Papai-
Noel... O segundo pedido demorou, mas foi concedido. Aos 10 entrei
com minha mãe e 5 irmãos naquele caminhão. Aquilo fedia,
chacoalhava, não tinha lugar nem pra se mexer. E a estrada era
longa...
Mas eis que cheguei em São Paulo. Eu, mais um Zé Ninguém
insignificante naquele monstro de cidade. Era pequenino e fraco,
como todos os outros. Fiquei intimidado com todos aqueles prédios
altos, aquelas pernas que passavam apressadas, luzes, carros, aviões
cortando o céu. Mas no fundo achei bonito... era tudo tão diferente,
e aqueles rostos ferozes e obstinados dos paulistas me diziam que,
por algum motivo, esse era o mundo certo. E ainda havia aqueles que
nos olhavam na cara e se riam, nos chamando de um monte de nomes que
só muito depois fui entender o significado. É, eles deviam estar
certos.
Fomos morar numa casinha de ripas e lona, numa favela bem longe do
centro. Era tudo muito simples, muito pobre, talvez mesmo pior do
que o velho casebre perdido no meio do sertão. Mas aquilo ali enchia
toda família de orgulho. Era um começo, um difícil começo, mas no
meio de tanta riqueza, haveria de sobrar um pouquinho pra quem
temesse a Deus e nunca o trabalho pesado. E aí veio o terceiro
pedido que me lembro: "Papai Noel, queria que a vida aqui fosse
diferente...
quando arrumarem um emprego tudo vai mudar."
É Papai-Noel..
motivo demorou muito pra eu entender, e não tinha nada a ver com
Deus... Aí o tempo foi passando, nós naquele sufoco, mãe saindo pra
pedir de porta em porta com os irmãos menores no colo, enquanto eu e
os mais velhos saíamos para vender balas nos coletivos. Isso sim, me
intrigava...
sardinha as 6:00 da manhã, ainda podia nos olhar com tanto nojo,
desprezo e escárnio? Não estávamos ganhando o pão com o suor do
rosto e do corpo inteiro como todos eles? Enfim, algumas respostas
começaram a aparecer mais claras. Mas ainda tinha esperança, ainda
escrevia pra você, Papai Noel. Papai Noel... pra mim, o senhor se
chamava mesmo era esperança.
Até que um dia, aos 13 anos, numa dessas andanças pelo centro de São
Paulo, me encontrei com o senhor. Foi naquele shopping bonito, o ...
não me lembro mais, mas era uma beleza. A grande porta de entrada
toda enfeitada de guirlandas. Olhei pra cima e não podia
acreditar... aquilo era como os palácios de reis e princesas que eu
imaginava la no sertão. E quantos reis e princesas não havia ali
dentro! Me senti menor do que eu realmente era, mas prossegui,
pisando o imenso tapete vermelho que levava a um suntuoso trono. E
quem eu encontrei sentado naquele trono? Você! O Papai Noel em
pessoa, sentadinho embaixo de um gigantesco pinheiro, salpicado de
guirlandas, estrelas, doces e mil presentes.
Vi a alegria das crianças no seu colo, os pais tirando retratos, os
sonhos deles desfilando pelos corredores..
fábrica do Papai Noel? Não pude mais me conter, e avancei correndo,
tropeçando nas próprias canelinhas finas de tanta emoção, só pra
poder te abraçar e pedir pessoalmente tudo aquilo que não consegui
com as cartinhas. Mas então senti mãos pesadas me agarrando por trás
e me jogando ao chão: "que é isso moleque, ta doido? Some do
shopping seu trombadinha, senão eu te encho de porrada! Aqui não é o
seu lugar!" eu gritava e esperneava, chamando seu nome sem entender
direito o que acontecia... e pra variar, o senhor não me ouviu.
Depois que me tiraram do shopping, fiquei do lado de fora, vendo as
cores das vitrines, os manequins, os brinquedos, tênis, roupas,
perfumes, guloseimas.
E vi também meu reflexo no vidro: pequeno, desnutrido, apodrecido
antes de amadurecer. Vestido com aqueles farrapos, era óbvio que
aquele ali não era o meu lugar. Mas por quê? Fora a casca, eu não
era tão diferente daqueles principezinhos. Era ainda criança, com
todos os sonhos e a inocência da criança. Aquilo rodava, batia e
retumbava na minha cabeça. O que havia de errado? Papai Noel não
gostava de mim? Deus não gostava de mim? E naquele dia,
acabou-se a inocência, e com ela a esperança.
Esperança...quem espera sempre cansa, e eu me cansei. Não havia nada
de errado comigo, a não ser o fato de ser nordestino, preto e pobre.
Ou melhor, nada de errado, a não ser a ousadia de ter nascido. O que
eu pedia então (já não sabia mais para quem) era força. Força pra
entrar naquele shopping e arrancar dos reis, rainhas, príncipes e
princesas tudo aquilo que brilhava nas vitrines. Arrancar deles tudo
o que eu não podia ser, o que eu não podia ter. mostrar pr'aqueles
seguranças quem era o moleque. E foi o que eu fiz. A criança fraca e
inocente virou um monstro raivoso. "Papai Noel, se te encontrar de
novo, arranco seu coração, e toda a cidade vai se cobrir de
vermelho, vermelho como sua roupa".
E daí pra frente, foi só ligar o piloto automático... assaltos,
seqüestros, assassinatos, tráfico de drogas. Então o Zé Ninguém lá
da Paraíba se tornou alguém: alguém que tinha todo o dinheiro
necessário para entrar em qualquer porra de Shopping, comprar roupas
de marca, eletrônicos, tênis e tudo o que desejasse. A cabeça
erguida era o sinal da mudança. Minha mãe não aprovava, dizia que
Deus ia me castigar, que era um dinheiro maldito. No entanto, não
podia recusar a comida que eu colocava no armário (é, agora a gente
tinha um armário). E a cada natal que passava, eu me lembrava
daquele dia no shopping, e de todas as humilhações e privações que a
ganancia humana nos fizera sofrer. E me lembrava do velho de barba
branca que nada fez quando os gorilas agarraram a criança e a
enxotaram do palácio de cristal. Bem, não importava mais... o novo
instrumento de trabalho e a nova fita, eram as únicas coisas que
interessavam.
E eis que veio o dia. 24 de dezembro. A cidade transformada num
caos, furiosos consumidores se acotovelando por uma promoção. A
polícia em polvorosa com os pequenos furtos na multidão. O dia
perfeito para um crime perfeito. A agencia bancária, a moto e a
9mm. "todo mundo pro chão! Quer passar o natal com a família? Da
aqui o dinheiro filho da puta, que ninguém sai ferido!" Tudo
perfeito. Só não contava com o heroísmo do verme á paisana que
sacava o dinheiro pra comprar a boneca da filha. Um estrondo, gritos
e tudo escuro.
È velho Noel... Nem a morte pudestes me conceder! Naquela época já
era maior de idade, 22 anos. Minha filha acabara de nascer. Desde
então mofo aqui nessa cela, matando um dragão por dia pra continuar
vivo e digno. E agora, assim acabado, venho novamente lhe pedir um
presente nesse natal. Não é a chuva, não é o pau-de-arara, não é o
emprego, não é o brinquedo. Nem ao menos é pra mim. O que venho lhe
pedir é pra minha filha. Ela hoje tem 10 anos, é uma linda menina. O
que peço, velho, é que coloque no coraçãozinho dela a esperança que
um dia arrancou do meu. Não aquela esperança de escravo, de quem se
sente inferior, errado, submisso. Quero uma esperança inocente mas
forte, pura mas vigilante. Que ela não se deixe enganar por Papais-
noéis, Deuses ou por todo esse lixo ocidental, o consumo, a moda, o
progresso, o trabalho, a filantropia burguesa, o preconceito, a
hierarquia. Essas brilhantes vitrines que só servem para que a gente
enxergue o lixo que a gente é...
Que ela tenha a inocência da criança e a força do leão pra criar um
novo mundo!
Feliz natal.
Zé Ninguém, 2006
"tudo aquilo que pode ser destruído deve ser destruído para que as
crianças possam ser salvas da escravidão"
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