[espacosaude-ma] Saques em dinheiro vivo no governo
Tribunal de Contas da União investiga uso de cartões corporativos para retiradas em espécie por funcionários da Presidência da República
Chegou na terça-feira 16 ao gabinete do ministro Ubiratan Aguiar, do Tribunal de Contas da União, um pedido de devassa em todas as prestações de contas com cartões de crédito corporativos de funcionários do Governo Federal. Protocolada a 14 de julho no TCU, onde recebeu o número 011.825/2005, a requisição ganhou condição de processo oficial. Aguiar deve emitir um parecer e, nos próximos dias, o pedido deve ser votado pelo conjunto dos sete ministros do TCU.
O que o tribunal vai decidir, em suma, é a quebra do sigilo dos cartões de crédito corporativos utilizados por funcionários do Palácio do Planalto para pagar as despesas do Gabinete da Presidência da República, da Granja do Torto onde o presidente Lula reside com sua família e dos ministros que assessoram diretamente o presidente.
De acordo com a documentação sigilosa que dá lastro ao processo, à qual DINHEIRO teve acesso com exclusividade, o Palácio do Planalto pagou, entre janeiro e agosto do ano passado, R$ 5,5 milhões em despesas com cartões de crédito. Os gastos com cartão neste ano aumentaram. Até a última quinta-feira 18, as faturas dos cartões corporativos do governo federal somavam exatos R$ 10.268.310,98, segundo dados do Sistema de Acompanhamento Financeiro da Administração Federal (Siafi).
Do total, R$ 5.670.849,53 referem-se a despesas do gabinete do presidente. O que mais inquieta os ministros do TCU, no entanto, é o volume de saques em dinheiro vivo feito por funcionários do Planalto através dos cartões corporativos. Entre janeiro e agosto de 2004, de um total de R$ 3,2 milhões em faturas, esses funcionários sacaram R$ 2,2 milhões em espécie o outro R$ 1 milhão foi usado para pagamento de despesas, aquela que deveria ser a função primordial dos cartões.
Este ano, a prática continua disseminada, mantendo a proporção. Dados do Siafi mostram que, dos R$ 10,2 milhões movimentados até a última quinta-feira, R$ 6,8 milhões foram retirados em dinheiro vivo. O valor dos pagamentos efetuados diretamente com cartões é a metade, R$ 3,4 milhões. Ou seja, os saques em dinheiro vivo representaram, em média, dois terços das faturas dos cartões.
A descoberta, pelo TCU, de que em vez de quitar as despesas do gabinete presidencial com o cartão de crédito, os assessores do presidente Lula mantêm o procedimento de sacar dinheiro vivo ocorre no momento em que o Congresso investiga movimentações em cash por políticos e partidos. Os cartões corporativos foram adotados justamente para aumentar o controle e a transparência, lembra o procurador Marinus DeVries Marsico, representante do Ministério Público no TCU e autor do pedido de quebra de sigilo dos cartões do Planalto.
Esses saques são exagerados, são cheques em branco, um artifício que desvirtua o uso dos cartões. O relator do processo, Ubiratan Aguiar, também se mostra impressionado: O tema é tão relevante que merece máxima celeridade, promete. As explicações do governo não são suficientes, os procedimentos adotados não são adequados e a possibilidade de irregularidade é real, diz o ministro Marcos Vilaça, autor de acórdão sobre o tema publicado pelo TCU na virada do ano. Desde que Lula tomou posse, as faturas do governo com cartões corporativos, sem prestação de contas ao TCU, já somaram R$ 18,7 milhões.
Para ajudar os ministros a decidir a quebra do sigilo dos cartões do Planalto, o auditores do tribunal elaboraram uma relação de todos os funcionários que receberam cartões corporativos. O presidente Lula não tem cartão, nem a primeira-dama Marisa Letícia, nem qualquer ministro ou autoridade conhecida. Somente um grupo de funcionários de carreira, que trabalham como assessores diretos no governo, ganhou cartão. No primeiro ano do governo Lula, 53 servidores do Planalto portavam cartões.
A partir de 2004, o número foi reduzido para 48. Chamados de ecônomos, eles têm por tarefa tanto fazer as pequenas compras de lanches e papelaria do Planalto, do Palácio da Alvorada e da Granja do Torto, como acompanhar o presidente em suas viagens, pagando as despesas com hotel, alimentação e transporte da comitiva. Os auditores também produziram um documento com a relação de cada um desses ecônomos, nome, CPF, a unidade da Presidência em que servem e o volume de saques em dinheiro vivo de cada um, assim como os gastos pagos com cartão.
Feito por amostragem e com base em dados do Siafi, o levantamento cobre o período entre janeiro e agosto de 2004. Nele, alguns servidores, principalmente os lotados junto à Presidência, destacam-se pelo volume de gastos e saques. De acordo com o documento, o funcionário Clever Pereira Fialho, CPF 265.787.941-53, lotado junto ao presidente, é o campeão absoluto dos gastos. Suas faturas no período somaram mais de R$ 1 milhão sendo que os saques em dinheiro vivo foram de R$ 226,9 mil.
DINHEIRO apurou que Clever é hoje o ecônomo titular do presidente. Lula também trabalha em revezamento com outros oito ecônomos, como Anderson Pereira de Aguiar (saques de R$ 239,3 mil), José Roberto Possa (saques de R$ 205,9 mil) e Ademar Paoliello Freire (saques de R$ 199,1 mil). No total, os nove ecônomos de Lula sacaram no período R$ 1,510 milhão uma média de R$ 189 mil mensais. Outro nome que chamou a atenção dos auditores é o de Maria Emília Matheus Évora, CPF 389.868.251-04.
Nos oito meses examinados pelo TCU, ela movimentou com o cartão R$ 441,5 mil os saques em dinheiro foram de R$ 198,1 mil, numa média de R$ 24,8 mil mensais. DINHEIRO apurou junto a duas pessoas com assento no Planalto que Maria Emília, titular da equipe precursora que cuida das viagens do presidente, é a ecônoma destacada para cobrir as despesas da primeira-dama. A mulher do presidente está sempre acompanhada de sargentas do Exército e são as sargentas que acertam suas contas com Maria Emília.
Na semana passada, dois colunistas Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, e Giba Um, que mantém um site na internet publicaram simultaneamente a informação de que Marisa Letícia costuma pagar com cartões de crédito corporativos suas visitas ao cabeleireiro Wanderley Nunes, que atende em um mega-salão no Shopping Iguatemi, em São Paulo. O Planalto desmentiu. Wanderley também. Ele disse que, desde a campanha eleitoral, corta o cabelo de Marisa de graça. Nunca cobrei dela, porque acima de tudo é minha amiga, assegurou ele tempos atrás, o mesmo cabelereiro chegou a declarar que a primeira-dama fazia questão de pagar os cortes à vista.
Ato contínuo à publicação das notas, o presidente do Senado, Renan Calheiros, enviou requerimento do PSDB ao Planalto pedindo explicações sobre os gastos com cartões corporativos. No início da tarde de quarta-feira 17, os documentos do TCU obtidos pela DINHEIRO foram enviados por fax para Secretaria de Imprensa da Presidência da República, que os encaminhou para a assessoria da ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil. Até a tarde de sexta-feira 19, o Planalto não havia se manifestado sobre o assunto. Procurada por DINHEIRO, Maria Emília disse que não poderia dar entrevistas e que qualquer informação deveria ser prestada pela Secretaria de Imprensa da Presidência.
Até 2000, os ecônomos usavam pequenas quantias em dinheiro, as caixinhas, iguais às de qualquer empresa privada, para cobrir as pequenas despesas do Planalto. Foi o então ministro Pedro Parente, da Casa Civil, quem decidiu implementar os cartões de crédito para aumentar a transparência. No governo Fernando Henrique, o Planalto enviava as faturas ao TCU. O governo Lula passou a resguardá-las como assunto sigiloso, com o mesmo cuidado das contas secretas (legais) do Itamaraty e das Forças Armadas.
Primeiro deixou de enviar faturas e notas fiscais ao tribunal. Depois retirou do Siafi a maior parte das informações sobre compras. Em março, os nomes de todos os ecônomos também foram retirados do Siafi. Há um ano, o deputado Augusto Carvalho, do PPS do Distrito Federal, entrou com uma representação junto ao TCU com base em reportagem de DINHEIRO que revelava o aumento dos gastos do Planalto com cartões corporativos. O tribunal então abriu uma inspeção no Planalto. Em novembro, três auditores do TCU estiveram na sala 208 do Anexo II do Palácio. Ali, atrás de portas trancadas, dois andares abaixo no nível da rua, um pequeno grupo de funcionários civis comandados pelo general Romeu Ribeiro Bastos, chefe da Secretaria de Administração do Planalto cuida dos arquivos secretos dos cartões.
Os analistas do TCU não tiveram acesso às faturas, mas pinçaram cópias de cinco prestações de contas. Assim, puderam compreender a sistemática dos gastos. Em meio às notas fiscais de compras de cartuchos de impressoras, azeite de oliva extra virgem e geléia de uva, encontraram uma fatura do Grand Hotel CadOro, em São Paulo, emitida em nome do então ministro Luiz Gushiken, da Comunicação de Governo. A fatura informa que entre 7 e 9 de abril de 2004, Gushiken gastou R$ 470 em diárias. Entre outros extras, consumiu R$ 231 no restaurante e R$ 501 no bar do hotel. O total da conta foi de R$ 1.249,98. Quem pagou foi Elisabeth Ferreira, esposa de Gushiken, com seu cartão de crédito pessoal da Visa.
Os auditores do TCU encontraram essa fatura em meio à prestação de contas da servidora Maria da Penha Pires, portadora do cartão corporativo 016790814, da Visa. Um detalhe intrigou os auditores. O extrato demonstrativo do cartão corporativo de Penha mostra que ela não realizou nenhuma compra diretamente com o plástico e o utilizou apenas para sacar dinheiro vivo. O TCU não sabia do detalhe. Naquele documento, ela informava que sacara de uma só vez R$ 7.850. Comprou, com o dinheiro, material de escritório e reembolsou as despesas de Gushiken no CadOro. Procurado por DINHEIRO, Gushiken encaminhou o tema para Maria da Penha.
Ela explicou que costuma sacar dinheiro vivo porque muitas empresas de Brasília não aceitam cartão de crédito. Em sua prestação de contas, porém, há notas fiscais de quatro papelarias, como a ABC, maior da capital. Todas as quatro aceitam Visa. Os documentos do TCU apresentam um mapa detalhado de cada órgão do governo que se utiliza dos cartões. O levantamento de 2004 (entre janeiro e agosto) mostra que 68 órgãos federais gastaram R$ 8,9 milhões e que foram sacados R$ 5,1 milhões em dinheiro vivo. A Secretaria de Administração do Palácio do Planalto foi responsável por mais da metade dos gastos. Usou cartões para comprar R$ 5,2 milhões, sendo R$ 2,2 em saques.
Em segundo lugar, apareceu a Agência Brasileira de Inteligência, Abin, na época dirigida pelo delegado Mauro Marcelo. Gastou R$ 1,3 milhão e só R$ 34 mil em compras com cartão o restante em saques. Um novo levantamento, do deputado Eduardo Paes (PSDB) junto ao Siafi, mostra que o Gabinete da Presidência continua sendo responsável em 2005 pela maior movimentação R$ 5,67 milhões até 18 de agosto seguido do Incra, com R$ 844 mil. A direção do órgão, presidido por Rolf Hackbart, esclarece que há uma orientação de governo para estimular o uso dos cartões como forma de aumentar a transparência dos gastos.
Informa ainda que as 12 superintendências do Incra possuem cartões, vários cartões por Estado, e que eles são usados tanto na compra de livros, quanto nas viagens pelo interior. É muito simples terminar com todas as dúvidas, diz o deputado Paes, que também pesquisa os cartões do Planalto. Basta o presidente da República mandar abrir as faturas dos cartões e mostrar que sempre andou na linha.
João Alberto Camara
msn: j.sabbath@ibest.com.br
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